22 de janeiro de 2007

A Vida tem dessas coisas

Vida tinha um nome que ela não gostava. Sentia responsabilidade demais se chamar “vida”. Vai que fosse algo menor como, Flor ou Lua, mas sua mãe não gostava de coisas menores e colocou “Vida” no nome da primeira e única filha que jamais teve coragem de ter.
Vida sabia tudo o que tinha pra saber sobre esquilos e cobras venenosas, mas não sabia nada ou quase de amor e da própria que lhe nomeava. Lia coisas que alguém em sua idade não leria nem obrigado, mas Vida lia e com muito gosto, porque - qualquer livro, dizia Vida, engrandece. Qualquer mesmo, pois Vida lia de tudo e não se cansava.
Sentia medo de escuro porque nunca sabia o que estava escondido nele e era certo que algum dia ainda iria bater o joelho em alguma quina das várias mesinhas que sua mãe insistia em manter no caminho entre a cozinha e o quarto. Acreditava que se cavasse um buraco no chão chegaria no Japão, mas morria de preguiça de atender a porta quando alguém batia ou até o mesmo o telefone que ficava ao lado da cama.
Vida tinha tiques que ela não sabia como parar de ter. Sentia dores agudas, segundo ela, no coração quando via algum ser sendo maltratado na frente de alguém que ele apreciasse. Não gostava do número 456 e de nenhum outro que fosse uma seqüência.
Andava todo dia causando tropeções pra que talvez caísse e tivesse que engessar a perna, ou até mesmo o braço, mas podia ser um dedo que fosse. Vida nunca tinha quebrado nada em seu corpo e isso não era coisa normal pra alguém como Vida. Pelo menos ela achava.
Vida odiava apelidos e piadinhas com nomes e isso era uma outra coisa que a irritava a respeito de seu nome. Não gostava de “Vidinha” e nem de quando falavam “a Vida só quer viver a vida”. Isso a irritava tão profundamente que chegava a doer no pé.
Não tinha um carro, não sabia dar estrelinha, não gostava da música “O Barquinho” e queria saber tocar a nota ‘Dó’ no piano. Nunca soube dançar lambada e ver o desfile das escolas de samba na TV era uma tortura incrivelmente dolorosa.
A vida da Vida era uma vida como qualquer outra vida, mas a vida da Vida era com letra maiúscula porque a vida da Vida era nome próprio e de mais ninguém.